3 de janeiro de 2012

Esmola


            Recebemos uma penca de conselhos de amigos e familiares quando decidimos vir pra cá. Entre muitas dicas importantes, uma delas era que aqui encontraríamos mais pessoas nas ruas pedindo esmola do que estávamos acostumados. Claro, no RS é difícil porque é muito frio e em SC, principalmente em BC que é uma cidade turística de classe mais alta, os mendigos devem ser (imagino) convidados a se retirar para não ofuscar a paisagem dos veranistas da Avenida Atlântica, enfim...
            Quem é de BC conhece a Dona Inês. Talvez não pelo nome, mas é uma senhora baixinha, cabelinho branco, sempre vestida com a roupa de “Agente Ambiental” cedido pela prefeitura àqueles que catam pelas ruas latinhas, garrafas PET e papelão. Não tinha um dia sequer que eu não a encontrasse pelas ruas. Morava próximo ao prédio que nós morávamos e eu a via de manhã cedo saindo com um saco vazio, boné e seu chinelinho. Às vezes, íamos caminhar ou jantar e lá estava ela, 22h ou 23h ainda trabalhando.
            Ela ia passando pelas lixeiras que ficam ao lado dos bancos da Avenida Atlântica (beira mar) cumprimentando quem estivesse por lá com um “Bom dia! Boa tarde! Boa noite!” antes de enfiar sua mão calejada dentro daquela caixa de surpresas. Tirava de lá sempre uma latinha no mínimo, e assim ia enchendo suas sacolas, levando pra casa e voltando para coletar mais.
            Um dia não aguentei, parei pra conversar. Apresentei-me e pedi o nome dela. Com um sorriso no rosto e sem parar de catar o lixo ela me contou um pouco da sua história. Sensibilizada, convoquei alguns amigos e enchemos uma caixa grande de alimentos e coisas úteis para presenteá-la. No dia em que fomos entregar, ela não estava em casa, conversamos com o vizinho e nos surpreendemos. Ao contrário do que imaginávamos, a Dona Inês não era tão pobre. Tinha casa própria, metade de alvenaria e metade de madeira. O vizinho explicou que pra conseguir seu dinheirinho ela aluga uma parte da casa e na outra mora sozinha, que sai todos os dias sem falta para catar latinhas e que é muito querida por todos.
            Claro que isso não era motivo pra desistirmos da doação, mas era pra que eu ficasse pensando o que levava uma senhora com a idade dela ficar sol a sol catando latinhas, já que pelo que sei, o preço que pagam não é “grandes coisas”. Com certeza é muito menos do que ela recebe com o aluguel de uma parte da casa. Não perguntei o porquê a ela, já que isso nem é da minha conta e poderia soar de maneira estranha. Mas, imagino que seja não apenas pelo dinheiro que consegue na venda, mas pelo fato de estar trabalhando, ativa, numa rotina que a mantém com a pele queimada do sol, o rosto suado de calor, mas a mente limpa e saudável.
            Passei a admirar ainda mais aquela senhora e toda vez que a vejo penso o quanto ignorante eu sou com minhas reclamações de cansaço e estresse. Um dia fui comprar flores para colocar no nosso apartamento e encontrei a Dona Inês. Com um casaco de crochê azul celeste e sem boné. Ela me reconheceu e parou para dar um “bom dia”. Eu disse que ela estava muito bonita e ela respondeu: “Estou indo para a Igreja!”. Dei uma das flores que havia comprado e recebi um abraço com cheiro de creme hidratante (vaidosa!). Continuei minha caminhada pensando novamente em como sou pequena.
            Sabendo dessa e de outras histórias que tenho sobre pessoas batalhadoras que me sensibilizam, meus amigos me alertavam sobre minha vinda para o Ceará: “Se você já se emociona assim aqui, lá você vai doar até as calças no meio da rua!”. Realmente a pobreza aqui é mais evidente e aquele aperto no coração que sentia às vezes em SC se faz presente todos os dias. Preciso aprender e exercitar o “não” em algumas situações. Não são em todos os sinais que posso contribuir com àqueles que limpam o pára-brisa, nem em todos os lugares que estaciono àqueles que colocam um pedaço de papelão para o sol não maltratar o painel do carro,... Mas não é fácil.
            Aqui as coisas se misturam e a mesma pessoa que vende jornais no sinal, quando você faz gestos de que não tem interesse em comprar, ela tira do bolso uma caixinha que diz: “Ajude no meu Natal!”. A mesma pessoa que trabalha, pede esmola.
            Numa das nossas caminhadas pela beira mar de Fortaleza, enquanto íamos comprar um sorvete no Mc Donalds, um menino estendeu a mão e falou alguma coisa, que dificilmente eu consigo entender (pelo sotaque e pela voz arrastada de quem pede ajuda). Eu disse o famoso e que me corta a alma: “Não tenho nada aqui!”, tentando ser gentil, mas sem olhar nos olhos dele pra não me derreter. Ele disse: “Mas eu não quero dinheiro, tia. Quer só um lanche!”. Daí foi inevitável, UM LANCHE! Poh! Pensei: “Poxa, o menino passa o dia aqui pedindo esmola, vendo as pessoas saindo com sorvete e hambúrguer, ele também merece um, neh! Compramos dois sanduíches do Mc e quando fomos entregar ele sorriu e agradeceu. Aí aquela sensação de ter feito algo de bom nos invadiu. Atravessamos a rua e tive uma má impressão quando vi um cara mais velho atravessando ao mesmo tempo que nós só que na direção contrária. Um pouco depois eu olho pra trás, o menino olha pra mim e dá risada. Eu vejo que o pacote não está mais nas suas mãos e sim indo embora nas mãos do cara que atravessou a rua antes. Aí acho que eu e o menino pensamos a mesma coisa a meu respeito: “Idiota!”
Como eu fui burra! O menino riu na (e da) minha cara. Eu era mais uma turista burra, enganada e sensibilizada pelo menino bonitinho e pobre, usado como laranja pra um cara mais velho e sem dignidade.
            A sensação de caridade foi completamente destruída pela raiva de ter sido enganada. E viva a Cássia Eller:

“Eu só peço a Deus
Um pouco de malandragem
Pois sou criança
E não conheço a verdade
Eu sou poeta
E não aprendi a amar...”

            Por essas e outras creio que o melhor a fazer mesmo é se engajar em projetos voluntários, fazer doações diretamente nas instituições, etc. Por outro lado, sabe-se que este tipo direcionado de doação não abrange as pessoas que estão nas calçadas pedindo ajuda...e será que deveria?

Pra encerrar, um pedacinho de outra música da Cássia Eller que eu acho muito divertida, “Partido Alto”:
“Deus me deu mãos de veludo
Prá fazer carícia
Deus me deu muitas saudades
E muita preguiça
Deus me deu pernas compridas
E muita malícia
Pra correr atrás de bola
E fugir da polícia
Um dia ainda sou notícia”

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